Quando, já sobre a entrada do hospital, o helicóptero parou no ar para começar a descida, o estado de torpor desapareceu, com o bafo de calor do meio-dia que envolvia tudo. O impacto do aparelho tocando o chão balançou-me o corpo e eu senti dores por todos os lados, O pesadelo continuava. Dois homens desatarraxaram a maca e começaram a transportar-me para dentro do hospital. O sol ardia e eu não podia erguer a cabeça, pois receberia os raios nos olhos. Um homem me acompanhava, falando e falando. Quando percebi que era comigo, demorei a entender o que queria. Era um padre, perguntava se eu ia me confessar:
— Obrigado, padre, não sou católico.
Ele insistia:
— Numa hora dessas, meu filho, isso não tem importância...
A idéia então voltou:
— Meu estado é ruim, vou morrer!
Entrei no hospital, rasgaram o que restava da minha roupa, fui radiografado, fotografado, fichado e depois levado por um corredor escuro. Ouvi uma voz sumida:
— Não se preocupe, agora você vai dormir um pouco.
Acordei num quarto, o braço esquerdo enfaixado, o rosto limpo e barbeado, o corpo coberto da cintura para baixo, com dois brasileiros ao meu lado: Luís Edgard de Andrade, carioca, bom jornalista e bom amigo, e Rogério Corção, representante diplomático do Brasil no Vietnã, também um boa-praça.
O bom humor tinha voltado e eu estava quase tranqüilo. Corção falou primeiro, tentando me consolar:
— Viu, Ribeiro, seu problema é só no lado esquerdo — a perna e o braço. Se fosse no direito seria pior, não é mesmo?
— O diabo — respondi brincando — é que eu sou canhoto!
Luís Edgard pediu uma entrevista e me perguntou o que eu achava de ter perdido a perna esquerda.
— Quando eu tinha dez anos, andei quase um ano de muleta por causa de uma espécie de tuberculose óssea nessa perna. Nunca mais ela acertou o passo, e era até mais fina que a outra. Acho que ela já foi tarde...
A subvalorização do que me tinha acontecido e mesmo a imprevisão dos dias que me esperavam — seriam os 15 dias mais dolorosos e infelizes da minha vida — iam ser-me explicadas algum tempo depois por um médico, ainda no Vietnã. Quando o corpo humano perde abruptamente uma de suas partes — disse ele —, as glândulas supra-renais, “mal-informadas” do que aconteceu, registram o déficit orgânico atribuem-no a alguma crise passageira e passam a trabalhar em regime de safra açucareira para compensar, com uma superprodução de seus hormônios, a engrenagem do corpo que está em deficiência. Essa produção excessiva de adrenalina, acrescida do efeito da morfina e de outros psicotrópicos usados para mascarar a dor, leva a um estado de falsa euforia, e dura até o momento em que as supra-renais conformadas com a nova situação, desistem de compensar o déficit orgânico e voltam à sua produção normal. Aí, então, a parada é dura, pois mesmo a morfina não fará mais efeito como nos primeiros dias, além de atrapalhar o estômago e provocar vômitos e tontura. Entra a fase de depressão profunda a fase em que a felicidade pode ser claramente definida: felicidade é a capacidade de não sentir dor e de poder tomar duas colheres de sopa!
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